sexta-feira, 29 de agosto de 2014

NO CENTRO DO MUNDO DA BOEMIA NATALENSE: FLANANDO PELO BECO DA LAMA

Este texto é parte da matéria que será em breve publicada no número 4 da Revista Pindaíba. Não resisti e decidi partilhá-lo aqui: como porta de entrada para este blog, aí vai o registo do meu carinho e saudade da "cidade noiva do sol"...




NO CENTRO DO MUNDO DA BOEMIA POTIGUAR:
FLANANDO PELO BECO DA LAMA

Se quiser fumar, eu fumo. Se quiser beber, eu bebo. Não interessa a ninguém.
(trecho da canção “Lama”, de Aylce Chaves e Paulo Marques, eternizada na voz da norte-rio-grandense, de Assú, Núbia Lafaiette)

A embriaguez, juntamente com o riso e a arte, é nossa condição imemorial: os registros mais longínquos, das eras mais primordiais, mostram que o animal humano bebe, ri e faz arte desde sempre na sua vita sapiens. Em relação ao primeiro aspecto, particularmente (embora estejam os três radicalmente interligados), eu poderia citar mil fontes, dados, obras e autores que mostram como a gente foi, é e provavelmente seguirá sendo bebuns de mão cheia: os primeiros registros de cultivo do vinho, por exemplo, que datam de 5 mil anos atrás, no Egito antigo; os rituais fálicos e carnavalescos nas festas de colheita que homenageavam o deus grego Dioniso (Baco); os poetas do naipe de Kayyam, Álvares de Azevedo ou  Bukowski etc. etc. etc.). O fato é que, em qualquer época e em qualquer rincão deste mundo, a gente toma todas! E sempre sobra espaço pra uma saideira...
Pois a capital do Rio Grande do Norte (ou Rio Grande Sem Sorte, como nomeou certa feita o poeta Bosco Lopes, aliás, papudinho de primeira grandeza), Natal, a conhecida Esquina do Continente, tem também um cantinho todo particular onde a fina nata da boemia, em toda sua fauna etílica, se encontra: o Beco da Lama!








O Beco da Lama. Ilustração do vanguardista velha-guarda Falves Silva. Publicado originalmente em uma das edições do Jornalzinho do Sebo Vermelho, nos anos de 1990.




O nome, certamente, remonta há pelo menos dois séculos atrás, quando o Beco passava pelos quintais das casas e para onde escorriam os dejetos dos moradores. Dando uma volta por lá hoje em dia, você encontra de um tudo, além da lama: casas de macumba, salões de beleza, lanchonetes, campeonatos de xadrez, bancas de jogo do bicho, mas, sobretudo: bares! botecos! botequins! Biroscas, enfim, onde se possa emborcar (em todos os sentidos).
Desde quando advém essa tradição etílica do lugar? Não se pode afirmar com certeza... A região da Cidade Alta, bairro central onde se encontra o Beco, aglomera bares e cafés desde 1919, aproximadamente (segundo relata João Amorim Guimarães no livro Natal do meu tempo) e o Beco da Lama não poderia escapar desse desmantelo. Certamente, ao retornar de suas noites de pândega e desmesura, no começo do século XX, os boêmios Gothardo Netto, Abner de Britto, Jorge Fernandes e Câmara Cascudo ajudaram a desgastar seu calçamento, fétido de lixo e merda e, igualmente, perfumado de sonhos e delírios. Volonté, Gardênia, Fia e Catarro, mais recentemente, em suas andanças, flanaram pelo Beco muitas e muitas perdidas vezes... E também beberam por ali nomes consagrados da literatura moderna potiguar, que cantaram o Beco em seus escritos, como Newton Navarro, Eulício de Farias Lacerda, Berilo Wanderley e Paulo Augusto, entre tantos outros. Sem falar na multidão anônima de ébrios que, ao longo dos anos, têm desfilado pelo Beco, tendo só a lua ou algum gato de rua por testemunha... Ou nem isso.
  O Beco da Lama está em todas. Já n´O Parafuso, um jornal de humor que circulou em Natal entre 1916 e 1917, por exemplo, numa sessão sacana de maledicências chamada Telegramas, dizia-se:
Ele já entra na casa
E vai até a cama.
Mas, só entra pelos fundos
Que é no Beco da Lama.
Ou seja: na Belle Époque a comédia já troava no Beco da Lama...
Mas houve um momento especial em que o Beco se tornou cult, digamos assim. Entre as décadas de 1980 e 1990. Com a abertura democrática e as (des)ilusões das eras Sarney e Collor, parece que a galera se esmerou em encher a cara ainda mais (up!). E não só: inventou de fazer do Beco palco de acontecimentos culturais: festejos pelo Dia Nacional da Poesia (14 de março), lançamento de publicações alternativas (A Franga, A Margem etc.), saída de blocos de carnaval (Manicacas no Frevo), revisitando a tradicional relação entre literatura, música e arte com a boemia. Além das putas e pedintes, o Beco passou a ter como habitués poetas, artistas, jornalistas, fotógrafos, performers, sebistas, funcionários públicos, intelectuais e vagabundos em geral. O que contribuiu com isso também era a existência do Hotel Ducal nas proximidades, onde “celebridades” se hospedavam e davam um giro por ali. 


Os bares mais frequentados eram o bar de Odete, o Balalaika e o clássico bar de Nazi, um sírio-libanês famoso pelas meladinhas que preparava e pelos esculachos nos frequentadores mais bonequeiros (Nazi, inclusive, é personagem de um conto do já citado escritor potiguar Eulício Farias de Lacerda, do livro “Os deserdados da Chuva”).




O Beco da Lama no final da década de 1960


Outros dois acontecimentos colocaram o Beco no topo. Um foi a criação do Festival de Música do Beco da Lama, o MPBeco, com apresentações de músicos e compositores da terra. E o outro foi quando um grupo de amigos cachaceiros inventou de inventar uma Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências, a tal da SAMBA. Além de promoverem pequenas guerras nos momentos de eleição (a última foi em 2012), a SAMBA articulou coisas legais como o Prato do Mundo (uma competição gastronômica de comidinhas e aperitivos de botecos da região) e a lavagem do Beco da Lama sob a bênção dos orixás.


A Revista Pindaíba também passou por ali, quando uma comitiva de Pindaibeiros[1] veio lançar em Natal (no efêmero bar A Toca) o número 3 da revista, no ano de 2013. Comeram e beberam no Bar de Nazaré, a mulher-cabra-macho que há anos, juntamente com Neide do bar da Meladinha (antigo bar de Nazi), segura a onda de manter um bar numa região dominantemente masculina e tipicamente machista.
E também eu tive minhas experiências pessoais e intransferíveis com o Beco da Lama. Uma delas, aliás, está registrada num continho ordinário publicado no meu blog (http://escritosdealicen.blogspot.com.br/2012/06/mais-um-continho-ordinario.html). Foi quando cismei de ser pichadora e fui escrever num dos muros um verso de Paulo Leminski. Enquanto eu pichava, não vi uma fossa aberta e minha perna afundou até o joelho no buraco. Fui, literalmente, batizada pela lama do Beco.
Evidentemente, nem tudo é só alegria e comédia. O Beco tem também suas histórias trágicas (brigas e assassinatos, uso destrutivo de crack, histórias de cornagem e ressaca etc.). Mas o fato é que, na impermanência de tudo, o Beco da Lama está lá, entre a avenida Rio Branco e a rua Vigário Bartolomeu, no Centro Histórico de Natal, sempre à espera de velhos e novos seres deste mundo cão.



[1] Estiveram presentes: André Dias, Manoel Carlos, Augusto Canibal, Carlos Jorge, Auria Rafael e João, Ana e Claudinho, além desta que vos escreve. O lançamento da revista foi celebrado com a exposição Cápsulas da Memória, de Falves Silva.










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