NO CENTRO DO MUNDO DA BOEMIA POTIGUAR:
FLANANDO PELO BECO DA LAMA
Se quiser fumar, eu fumo.
Se quiser beber, eu bebo. Não interessa a ninguém.
(trecho da canção “Lama”, de Aylce Chaves e Paulo Marques, eternizada
na voz da norte-rio-grandense, de Assú, Núbia Lafaiette)
A embriaguez, juntamente com o
riso e a arte, é nossa condição imemorial: os registros mais longínquos, das
eras mais primordiais, mostram que o animal humano bebe, ri e faz arte desde
sempre na sua vita sapiens. Em
relação ao primeiro aspecto, particularmente (embora estejam os três
radicalmente interligados), eu poderia citar mil fontes, dados, obras e autores
que mostram como a gente foi, é e provavelmente seguirá sendo bebuns de mão
cheia: os primeiros registros de cultivo do vinho, por exemplo, que datam de 5
mil anos atrás, no Egito antigo; os rituais fálicos e carnavalescos nas festas
de colheita que homenageavam o deus grego Dioniso (Baco); os poetas do naipe de
Kayyam, Álvares de Azevedo ou Bukowski etc.
etc. etc.). O fato é que, em qualquer época e em qualquer rincão deste mundo, a
gente toma todas! E sempre sobra espaço pra uma saideira...
Pois a capital do Rio Grande do
Norte (ou Rio Grande Sem Sorte, como nomeou certa feita o poeta Bosco Lopes,
aliás, papudinho de primeira grandeza), Natal, a conhecida Esquina do Continente,
tem também um cantinho todo particular onde a fina nata da boemia, em toda sua
fauna etílica, se encontra: o Beco da Lama!
O Beco da Lama. Ilustração do vanguardista velha-guarda
Falves Silva. Publicado originalmente em uma das edições do Jornalzinho do Sebo
Vermelho, nos anos de 1990.
O nome, certamente, remonta há
pelo menos dois séculos atrás, quando o Beco passava pelos quintais das casas e
para onde escorriam os dejetos dos moradores. Dando uma volta por lá hoje em
dia, você encontra de um tudo, além da lama: casas de macumba, salões de
beleza, lanchonetes, campeonatos de xadrez, bancas de jogo do bicho, mas, sobretudo:
bares! botecos! botequins! Biroscas, enfim, onde se possa emborcar (em todos os
sentidos).
Desde quando advém essa tradição
etílica do lugar? Não se pode afirmar com certeza... A região da Cidade Alta,
bairro central onde se encontra o Beco, aglomera bares e cafés desde 1919,
aproximadamente (segundo relata João Amorim Guimarães no livro Natal do meu tempo) e o Beco da Lama não
poderia escapar desse desmantelo. Certamente,
ao retornar de suas noites de pândega e desmesura, no começo do século XX, os
boêmios Gothardo Netto, Abner de Britto, Jorge Fernandes e Câmara Cascudo
ajudaram a desgastar seu calçamento, fétido de lixo e merda e, igualmente,
perfumado de sonhos e delírios. Volonté, Gardênia, Fia e Catarro, mais
recentemente, em suas andanças, flanaram pelo Beco muitas e muitas perdidas
vezes... E também beberam por ali nomes consagrados da literatura moderna
potiguar, que cantaram o Beco em seus escritos, como Newton Navarro, Eulício de
Farias Lacerda, Berilo Wanderley e Paulo Augusto, entre tantos outros. Sem
falar na multidão anônima de ébrios que, ao longo dos anos, têm desfilado pelo
Beco, tendo só a lua ou algum gato de rua por testemunha... Ou nem isso.
O Beco da Lama está em todas. Já
n´O Parafuso, um jornal de humor que
circulou em Natal entre 1916 e 1917, por exemplo, numa sessão sacana de
maledicências chamada Telegramas, dizia-se:
Ele já entra na casa
E vai
até a cama.
Mas, só entra pelos fundos
Que é no
Beco da Lama.
Ou seja: na Belle Époque a comédia já troava no Beco da Lama...
Mas houve um momento especial em
que o Beco se tornou cult, digamos
assim. Entre as décadas de 1980 e 1990. Com a abertura democrática e as
(des)ilusões das eras Sarney e Collor, parece que a galera se esmerou em encher
a cara ainda mais (up!). E não só: inventou de fazer do Beco palco de
acontecimentos culturais: festejos pelo Dia Nacional da Poesia (14 de março),
lançamento de publicações alternativas (A Franga,
A Margem etc.), saída de blocos de carnaval (Manicacas no Frevo), revisitando a tradicional
relação entre literatura, música e arte com a boemia. Além das putas e
pedintes, o Beco passou a ter como habitués
poetas, artistas, jornalistas, fotógrafos, performers,
sebistas, funcionários públicos, intelectuais e vagabundos em geral. O que
contribuiu com isso também era a existência do Hotel Ducal nas proximidades,
onde “celebridades” se hospedavam e davam um giro por ali.
Os bares mais frequentados eram
o bar de Odete, o Balalaika e o clássico bar de Nazi, um sírio-libanês famoso
pelas meladinhas que preparava e pelos esculachos nos frequentadores mais
bonequeiros (Nazi, inclusive, é personagem de um conto do já citado escritor
potiguar Eulício Farias de Lacerda, do livro “Os deserdados da Chuva”).
O Beco
da Lama no final da década de 1960
Outros dois
acontecimentos colocaram o Beco no topo. Um foi a criação do Festival de Música do Beco da Lama, o MPBeco, com apresentações de músicos e
compositores da terra. E o outro foi
quando um grupo de amigos cachaceiros inventou de inventar uma Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e
Adjacências, a tal da SAMBA. Além
de promoverem pequenas guerras nos momentos de eleição (a última foi em 2012),
a SAMBA articulou coisas legais como o Prato
do Mundo (uma competição gastronômica de comidinhas e aperitivos de botecos
da região) e a lavagem do Beco da Lama sob a bênção dos orixás.
A Revista Pindaíba também passou
por ali, quando uma comitiva de Pindaibeiros[1] veio
lançar em Natal (no efêmero bar A Toca) o número 3 da revista, no ano de 2013.
Comeram e beberam no Bar de Nazaré, a mulher-cabra-macho que há anos,
juntamente com Neide do bar da Meladinha (antigo bar de Nazi), segura a onda de
manter um bar numa região dominantemente masculina e tipicamente machista.
E também eu tive minhas
experiências pessoais e intransferíveis com o Beco da Lama. Uma delas, aliás,
está registrada num continho ordinário publicado no meu blog (http://escritosdealicen.blogspot.com.br/2012/06/mais-um-continho-ordinario.html). Foi
quando cismei de ser pichadora e fui escrever num dos muros um verso de Paulo
Leminski. Enquanto eu pichava, não vi uma fossa aberta e minha perna afundou até
o joelho no buraco. Fui, literalmente, batizada pela lama do Beco.
Evidentemente, nem tudo é só
alegria e comédia. O Beco tem também suas histórias trágicas (brigas e assassinatos,
uso destrutivo de crack, histórias de cornagem e ressaca etc.). Mas o fato é
que, na impermanência de tudo, o Beco da Lama está lá, entre a avenida Rio
Branco e a rua Vigário Bartolomeu, no Centro Histórico de Natal, sempre à
espera de velhos e novos seres deste mundo cão.
[1] Estiveram presentes: André Dias,
Manoel Carlos, Augusto Canibal, Carlos Jorge, Auria Rafael e João, Ana e
Claudinho, além desta que vos escreve. O lançamento da revista foi celebrado
com a exposição Cápsulas da Memória,
de Falves Silva.
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