QUEM AGUENTA MAIS UM GOLPE?
Em homenagem a Luís Maranhão Filho, Vulpiano
Cavalcante, Glênio Sá, Alírio Guerra, Meri Medeiros, Luciano Almeida, Juliano Siqueira,
Floriano Bezerra, Gileno Guanabara e Hermano Paiva.
Na minha cabeça
dolorida, as imagens se misturavam. Enquanto aquela voz cheia de ódio me
xingava, a canção dizia: Mas Deus é justo e verdadeiro!
Sim, um dia Charles vai
voltar. Era nesse pensamento que eu me agarrava quando o cretino me chutava, e
me cuspia, e me odiava sem sequer saber nada de mim. Ele não sabia qual era o
meu ascendente astrológico e nem a minha canção ou livro prediletos. Ainda
assim, fazia questão de vociferar, cheio de certeza:
- Puta ordinária! Puta
comunista de merda!
Deus criou o mundo. E era tudo perfeito. O ar, o fogo, a água e a terra. Tudo perfeito.
O céu muito azul, o calor do sol, os rios e as cachoeiras, as árvores
centenárias...
- Para se livrar de uma
febre, basta abraçar uma árvore, você sabia?
O próprio Câmara
Cascudo me dizia isso, com sua casaca verde de integralista e um copo de uísque
na mão.
- Tem cerveja? – eu perguntei,
olhando seus olhos muito claros.
- Tá lá no meu livro,
você leu, não leu?
Eu já ia me lembrar do
título, mas o golpe violento na minha barriga não me deixou atinar com nada.
Nada. O nada. No começo, era o nada. O caos. Para que Deus foi inventar o
homem, Cascudinho?
Na sala ao lado, a
quilômetros de distância, alguém gargalhou perversamente.
- A cadela se mijou
outra vez!
Mas isso foi antes do
riso perverso. Foi?... Foi, não foi, foi, não foi...
Deus é justo e
verdadeiro.
- Onde é que ele está,
sua puta de merda?
Quem, homem de Deus?
Charles?
Mais um chute. Dessa
vez, no rosto.
- E as outras milongas
mais? – perguntei, o dente quebrado caindo da boca.
Em resposta, mais um.
Na virilha.
A dor fazia luzir mil
cores, de mil tons. Talvez fosse assim o caos, no princípio de tudo, antes do
verbo, antes do homem criar sua tradição de guerra, de sangue e de dor. Sua
tradição de ambição e poder...
- Exatamente: Tradição,
a ciência do povo. Esse o título. - proclamou o professor, ordenando em seguida: - Agora, diga o ano.
Mais um golpe.
- Diga!
E antes de acabarem as
férias, outro golpe viria. Assim é a humanidade.
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