sábado, 13 de setembro de 2014

CONTOS QUE CONTO - 2

QUEM AGUENTA MAIS UM GOLPE?
Em homenagem a Luís Maranhão Filho, Vulpiano Cavalcante, Glênio Sá, Alírio Guerra, Meri Medeiros, Luciano Almeida, Juliano Siqueira, Floriano Bezerra, Gileno Guanabara e Hermano Paiva.
Na minha cabeça dolorida, as imagens se misturavam. Enquanto aquela voz cheia de ódio me xingava, a canção dizia: Mas Deus é justo e verdadeiro!
Sim, um dia Charles vai voltar. Era nesse pensamento que eu me agarrava quando o cretino me chutava, e me cuspia, e me odiava sem sequer saber nada de mim. Ele não sabia qual era o meu ascendente astrológico e nem a minha canção ou livro prediletos. Ainda assim, fazia questão de vociferar, cheio de certeza:
- Puta ordinária! Puta comunista de merda!
Deus criou o mundo.  E era tudo perfeito.  O ar, o fogo, a água e a terra. Tudo perfeito. O céu muito azul, o calor do sol, os rios e as cachoeiras, as árvores centenárias...
- Para se livrar de uma febre, basta abraçar uma árvore, você sabia?
O próprio Câmara Cascudo me dizia isso, com sua casaca verde de integralista e um copo de uísque na mão.
- Tem cerveja? – eu perguntei, olhando seus olhos muito claros.
- Tá lá no meu livro, você leu, não leu?
Eu já ia me lembrar do título, mas o golpe violento na minha barriga não me deixou atinar com nada. Nada. O nada. No começo, era o nada. O caos. Para que Deus foi inventar o homem, Cascudinho?
Na sala ao lado, a quilômetros de distância, alguém gargalhou perversamente.
- A cadela se mijou outra vez!
Mas isso foi antes do riso perverso. Foi?... Foi, não foi, foi, não foi...
Deus é justo e verdadeiro.
- Onde é que ele está, sua puta de merda?
Quem, homem de Deus? Charles?
Mais um chute. Dessa vez, no rosto.
- E as outras milongas mais? – perguntei, o dente quebrado caindo da boca.
Em resposta, mais um. Na virilha.
A dor fazia luzir mil cores, de mil tons. Talvez fosse assim o caos, no princípio de tudo, antes do verbo, antes do homem criar sua tradição de guerra, de sangue e de dor. Sua tradição de ambição e poder...
- Exatamente: Tradição, a ciência do povo. Esse o título. - proclamou o professor, ordenando em seguida: - Agora, diga o ano.
Mais um golpe.
- Diga!
E antes de acabarem as férias, outro golpe viria. Assim é a humanidade.


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