NADA DE NOVO SOB A LUA
Então, já dizia o ditado, e todo
mundo sabe que ditados dizem verdades imemoriais: desgraça pouca é bobagem. Não
bastava estar sozinho, numa cidade longe que só o caralho, sem eira nem beira
(e muito menos tribeira). Sem uma pessoa conhecida na cidade, sem um puto
sequer na conta corrente, sem uma dona pra aliviar a tensão. Não bastava a guerra
na faixa de Gaza e o horário eleitoral gratuito – tchan nam nam nam: eu tinha que adoecer.
Enfim, doente que estava, sozinho
num ap escuro, pequeno e fechado, eu precisava me alimentar. Nem água de beber
eu tinha, camará... O que fazer, céus? Um nó das tripas para coração e...
encarar os 15 graus em busca de uma birosca onde pudesse queimar os últimos trocados
numa cachaça e em algum tira-gosto vagabundo. A moleza no corpo queria me
obrigar a desabar na cama, mas algo me puxava para a rua.
Quando saí foi que entendi. A lua
tava cheia, enorme e amarelona no céu, só podia ser a razão daquela instigação
para sair, apesar da febre, apesar da liseira, apesar de que sempre tem um
apesar para perturbar. Fui me arrastando pela rua. Não era muito tarde da
noite, talvez nem dez horas. Os botecos deveriam estar cheios, mesmo sendo uma terça-feira.
Pra quem bebe, todo dia é dia. Entrei no primeiro que encontrei, numa esquina,
cara de pé-sujo, do jeito que eu apreciava. Escolhi uma mesa no canto e dei uma
geral ao redor: um casal se esfregava numa mesa, três caras jogavam cartas em
outra e um rapazola com ar distante numa terceira mesa, mais ao fundo, parecia
pensar na morte da bezerra.
O garçom veio, vestindo uma bata
que em algum dia remoto havia sido branca. No bolso, bordado, Bar Gostinho Bom. O cardápio era ainda
mais imundo, não me atrevi a pegar – e olha que eu não tenho frescura. Pedi uma
dose e perguntei o que tinha pra beliscar. Entre o prato de torresmo e o caldo
de carne, fiquei na segunda opção.
A cachaça veio. Prata. Dei uma
golada que desceu prateada pela garganta. Aí me animei. Saquei do livro que
trazia na mochila. Era a segunda vez que eu tentava domar o Elogio da Loucura, estava decidido. E
quando eu lia aquele trecho que dizia – ando
farta desse animal que se diz sábio – foi que percebi o rapazola da mesa ao
fundo se levantar e vir na minha direção. Parou na minha frente, colocou as
mãos na cintura e perguntou, com voz enrolada:
- E o que é que você tá fazendo
aqui, hein, hein?
Mexia a cabeça num gesto
repetitivo e incontido.
Aquele modelo de estultícia. Nada
mal para quem lia Erasmo. Respondi, serenamente:
- Tô aqui lendo meu livro e
tomando minha birita.
E, sem dar tempo pra ele
retrucar, indaguei por minha vez:
- E você, por que ainda não foi?
Na maior tranquilidade, ele
respondeu:
- Ah, tô esperando os cara aí pra
eu entregar o avião.
O garçom veio correndo lá de
dentro, tangendo o matusquela:
- Vai sentar, Denguinho, vai,
senta logo lá.
E pra mim:
- Não liga não, ele é doidinho da
bola...
Eu dei de ombros e voltei pro meu
livro. Era um livrinho de bolso, desses adquiridos em revistaria de rodoviária.
Uma tradução meio ordinária, talvez mais traidora que qualquer outra. Mas era,
enfim, a minha leitura para aquela noite fria de lua cheia e alma vazia.
Não se passaram nem três minutos
e quatorze segundos quando lá se vem o maluco de novo:
- Tu tá afins, tu tá afins? A
parada é da boa, é da boa sim! Hein, tá afins?
E riu um riso lunático, a baba escorrendo
pelos cantos da boca. Calçava um chinelo já bem gasto e a bermuda que vestia
exalava um odor de urina seca.
De novo o garçom botou o rapaz
pra correr. Trazia o caldo de carne que era gordura pura. Uma rodela de pão de
trinta anos atrás pra acompanhar. Na minha frente, colocou palitos, guardanapo
e molho de pimenta, muito eficiente.
- Bom apetite.
Faz-me rir. Findei a cana pra
aumentar a coragem e encarei o prato. Até que não estava mal... A fome é melhor
tempero, diz a sabedoria popular. Após umas colheradas, percebi o carinha me
fitando com olhos esgazeados. Olhar de fome. Não me aguentei:
- Tá afins? – foi minha vez de
perguntar.
Sem se fazer de besta, veio
correndo, sentou do outro lado da mesa, puxou o prato pra junto de si e pôs-se
a sorver sofregamente. Dava gosto de ver, tamanha naturalidade. A natureza,
pura e espontânea, é realmente uma coisa bonita de se apreciar, por mais
grotesca que possa parecer.
Eu pedia uma segunda dose quando
um carro parou em frente ao bar. Limpando os beiços com as costas da mão, o maluquete
se levantou de um salto e correu para junto do automóvel. Entrou pela porta de
trás e o carro arrancou.
Dei de ombros novamente, não era
da minha conta. Na cidade de onde eu fugira, a mulher que eu amava tinha
trepado com meu melhor amigo na nossa cama, por que é que eu ligar pra um
doidinho desconhecido que passa drogas e que se chama Denguinho? Não era da minha conta. Além do mais,
alguém tinha que fazer aquilo no mundo...
Eu voltara para meu livrinho (um
eufemismo, claro: era um livro bom que só a porra!) e já tomava a terceira dose. O casal havia ido embora e dos
caras só restaram dois, ainda insistindo com as cartas. Ouvi uma voz muito
distinta perguntar:
- Posso sentar?
Era o doidinho do Denguinho. Que de doidinho
não tinha mais nada. A face muito serena, os gestos muito contidos, a expressão
muito séria, o porte muito elegante. Ao meu gesto hospitaleiro, puxou a cadeira
e sentou. E vendo-o assim, tão são, eu também já me sentia curado. Acendeu um cigarro, muito fino, muito calmamente, e disse, muito simplesmente:
- Não disse que era da boa?
No céu, ainda a lua a iluminar a
noite, a rua e tudo o mais.